António Martins da Cruz: “Pedro Santana Lopes não tem que provar nada a ninguém”

O diplomata veterano pronuncia-se como ‘militante de base’. Sobre a eleição interna do PSD, afirma que ‘Santana não só será melhor líder da Oposição’ como também ‘melhor primeiro-ministro’. Aos que já lá estão, mostra ceticismo: ‘Há uma excessiva atenção das televisões ao que dizem deputados que ninguém conhece’.

O embaixador António Martins da Cruz recebe o SOL no seu escritório, no centro de Lisboa. Acabado de chegar de viagem e em vias de seguir para outra, o homem que aconselhou Cavaco Silva para a política externa durante nove anos e que carregou a pasta dos Negócios Estrangeiros no Governo de Durão Barroso tem uma visão crítica da política nacional, de que não sente falta, e realista da Europa, que, reconhece, perdeu coesão económica e social em comparação com um passado de maior ‘horizonte’. 

Viu a Europa, ainda antes de ser União Europeia, bem de perto nos anos 80 e 90. Se a coesão socioeconómica desses tempos desvaneceu na última década, quem terá maiores responsabilidades? 

A coesão foi, maioritariamente, colocada em causa pelos decisores políticos e económicos dos países do norte da Europa. Não souberam interpretar. Quando o sr. Jacques Delors, voltando um pouco atrás – muito influenciado por Felipe González e Cavaco Silva, apoiados por [Giulio] Andreotti – lançaram a ideia de coesão económica e social, esta era horizontal às políticas comuns. Qualquer política europeia tinha sempre que ter presente essa coesão. Depois de 2008, é manifesto que o princípio desapareceu; do Eurogrupo, das medidas decididas para os países do sul. 

Então o norte tem mais responsabilidade do que quem governava? Isto é, o decisor teve mais culpas do que o executor? 

Eu penso que sim, por uma razão. Na Grécia, em Espanha e em Portugal, assistiram-se a intervenções do exterior que limitaram a ação governativa. Perdeu-se capacidade de manobra para falar de igual para igual em Bruxelas, entre norte e sul. Deu-se, como diziam os romanos, uma capitis deminutio: uma diminuição da capacidade de argumentação. A máquina diplomática teve de empenhar-se em demonstrar aos outros países do mundo – no caso português, com os parceiros em África e na América Latina – que a instrumentalização do nosso setor financeiro não afetava a nossa capacidade de ter uma política externa. Por um lado, apagava-se o fogo e mostrava-se a Bruxelas que se cumpria; por outro lado, dizíamos aos outros aliados que, atenção, por estarmos debaixo de fogo na Europa não abdicamos dos eixos da nossa política externa. Eram equilíbrios complicados, de gestão diária.

 É curioso dizer isso. A ‘gestão de dia-a-dia’ é uma das críticas que a Oposição faz ao atual Governo.

Todos os Governos, de 2008 para cá, tiveram uma gestão de dia-a-dia. Repare que a crise financeira não está ultrapassada. As habilidades das cativações, sobretudo, são uma nuvem a tapar questões que não desapareceram. 

Com um Governo de continuidade de Passos Coelho seria diferente? Haveria mesmo mais crescimento? 

Tenho as minhas dúvidas. Portugal é uma das economias mais abertas da União Europeia; somando as importações, as exportações, o capital e os serviços que entrem e saem, chegamos a 80% do PIB quando Espanha anda por metade disso. Somos um país pequeno. Para que a economia cresça, precisamos de investimento estrangeiro. É difícil que isso suceda depois de um resgate financeiro ou no quadro de permamente instabilidade fiscal em que Portugal vive. Em segundo lugar, temos um Governo minoritário de esquerda, apoiado por um partido estalinista e por um partido marxista-trotsquista. Também aí estamos em contraciclo com a Europa, em que o centro-esquerda está a perder eleições e os partidos de direita a vir ao de cima. Um investidor estrangeiro hesitará sempre perante esses dois factores: o fiscal e o político. 

Estando já longe da política ativa, não deixa de ser um observador experiente…

… mais do que um observador, sou um militante de base do PSD, que só se filiou depois de sair do Governo, quando o PSD estava na Oposição e nas ruas da amargura. Foi aí que entendi militar.

O partido está nas ruas da amargura outra vez?

O PSD? Não! Levou algum tempo a recuperar de ganhar as eleições e não ter constituído governo. É normal.

Foi por isso que falhou na Oposição?

Demorou tempo a adaptar-se. Não foi Pedro Passos Coelho, foi o PSD no seu conjunto, os deputados, os comentadores. Demoraram um tempo que não deveria ter sido superior a 24 horas. O resultado das autárquicas não foi assim tão mau, mas provocou um terramoto interno. Acelerou-se o processo de sucessão e isso traz, naturalmente, uma dinâmica nova. Somando-a à desastrosa gestão do caso dos incêndios feita pelo atual Executivo, a aceleração pode não ter ficado por aqui. Depende do futuro líder do PSD encontrar – ou não – o ‘tom justo’ para fazer Oposição.

Que é qual?

A cada vez maior parlamentarização da vida política portuguesa é caso único em toda a Europa. Discute-se política como se discute futebol.  Há uma excessiva atenção das televisões ao que dizem deputados que ninguém conhece e ao que se passa – ou diz-se que se passa – em corredores obscuros de São Bento. Esta parlamentarização não é boa para o PSD porque o futuro líder não estará no Parlamento a fazer oposição ao chefe de Governo. Terá que trazer a luta política para a televisão e para as ruas, não para o Parlamento. Isso será difícil. 

É injusto julgar a candidatura a líder de Pedro Santana Lopes pelo seu tempo como primeiro-ministro?

De maneira nenhuma. Pedro Santana Lopes foi escolhido pelo partido, legitimamente, para substituir José Manuel Durão Barroso quando este foi para a Comissão Europeia. Tinha uma maioria parlamentar. O então Presidente da República achou, por razões que ele avaliou e que são hoje parcialmente públicas…

… está a referir-se ao ‘fartei-me do Santana’, na biografia de Jorge Sampaio…

… o Presidente achou que era a altura de dissolver o Parlamento para dar hipóteses ao eng. Sócrates de ser primeiro-ministro. Sacrificou Santana e a maioria do PSD e do CDS para Sócrates ser primeiro-ministro. Cada um, depois disso, retire as conclusões que quiser. 

É um restart de Santana Lopes.

Não diria assim. Pedro Santana Lopes continuou depois o seu percurso. Já tinha estado várias vezes no Governo, já tinha sido presidente de Câmara, foi o eleito com mais votos nas primeiras eleições que houve em Portugal para o Parlamento Europeu. Não tem que provar nada a ninguém. 

E parece-lhe o mais indicado para assumir agora a liderança.

Perante os candidatos que se apresentaram, não tenho a menor dúvida. Santana Lopes não é só o melhor líder da Oposição, será o melhor primeiro-ministro.

A ação de Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República dificultou a vida do PSD na Oposição até agora? Foi demasiado próximo do Executivo?

Eu acho que não. O Presidente da República é uma das pessoas em Portugal com mais experiência em política – apesar de uma passagem pela política algo limitada – e toda a sua intervenção como comentador deu-lhe uma notável capacidade de análise. É quem sabe gerir o melhor os timings políticos – os seus e os do país. Provou-o na intervenção depois dos incêndios, provou-o na coragem que teve em ir à pose do novo Presidente angolano. 

Foi um ato de coragem?

Evidentemente.

Porquê?

Porque as nossas relações com Angola não são propriamente as melhores neste momento. O Governo não tem qualquer culpa disso. Já não eram as melhores com o Executivo anterior. Deve-se, por outro lado, à imprudência da máquina judicial portuguesa, que deveria manter no recato aquilo que coloca em causa altos-dirigentes políticos angolanos. Se quiser que eu seja mais concreto: a máquina judicial portuguesa deveria, nesse caso, evitar fugas para os meios de comunicação social. É isso e não outra coisa que afeta as nossas relações com Angola.

Como europeísta e atlântista, não é paradoxal defender um regime que não partilha muitos desses princípios?

Não foi Angola que comprou a EDP, foi a China. Não foi Angola que investiu no Millennium, foi a China. Não foi Angola que comprou a Fidelidade, foi a China. Quer que elabore mais? A China é um país com o qual Portugal tem excelentes relações e é um país marxista de partido único, com pena de morte, não é? Em Angola houve eleições, eu até fui observador, e há vários partidos no Parlamento… Se Portugal só tivesse relações diplomáticas com partidos de sistema constitucional semelhante ao seu, estava reduzido a 30 ou 40 países. 

Regressando ao plano interno: 2019 não são exatamente ‘favas contadas’ para o PSD. O sr. embaixador já referiu as cativações e já referiu os incêndios. É explorando essas áreas que se regressa ao poder? 

A nova chefia do PSD deve, obviamente, criar uma dinâmica nova. Deve superar a parlamentarização – não da vida política, porque nesse sentido eu sou um parlamentarista, mas nas televisões – mas no sentido em que não estará no Parlamento. Deverá evitar o ziguezague ideológico que o PSD teve até agora. Mesmo no Governo anterior, houve algum. Fez com o que PSD se tivesse posicionado em certas matérias demasiado à direita e noutras não. É preciso regressar às origens, ao PSD de Sá Carneiro e de Cavaco Silva. Foram os políticos que, por razões até diferentes, mais marcaram o PSD. 

Isso ideologicamente é o quê?

Ser um partido popular e social-democrata, na conceção de centro e centro-direita, que é o papel do PSD no panorama político. O ziguezague ideológico fez-se para a direita e para a esquerda. O resgate terá sido uma das causas para o fenómeno, mas não terá sido a única. Não havia linha. O novo líder do PSD terá que ter uma. 

O PS não terá ocupado esse lugar ao centro?

Em política, quando há um vazio, o espaço é ocupado por outro… Daí a necessidade de criar uma alternativa através da nova liderança. Procurar acentuar os factores negativos do atual Executivo: no plano interno, no plano europeu e no plano externo. Olhe para o atlântismo. Sabe qual foi o último primeiro-ministro que se sentou enquanto tal na Casa Branca? José Manuel Durão Barroso, em 2003. Sócrates foi como presidente do Conselho Europeu, quando as lideranças eram por semestre, porque todos lá iam; como primeiro-ministro nunca lá foi. Pedro Passos Coelho nunca lá foi. António Costa, já vamos em dois anos, nunca lá foi. (Atrás do embaixador, estão quatro fotografias de Aníbal Cavaco Silva enquanto primeiro-ministro com, respetivamente, Ronald Reagan, Bush pai, Bill Clinton e Bush filho. Aponta para elas). Isto era fazer política externa. Há doze anos que não há. Viu algum dos primeiros-ministros de hoje a fazê-la?

Porque deixou de ser possível?

Pergunte-lhes.

(risos)