Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

Nos 130 anos da Lei Áurea, livro reúne 50 ensaios dos principais estudiosos sobre escravidão no país

'Dicionário da escravidão e liberdade' reflete ainda sobre as consequências da abolição
O senhor Militão Augusto de Azevedo com seus escravos em foto que data de 1860 Foto: Reprodução / Reprodução
O senhor Militão Augusto de Azevedo com seus escravos em foto que data de 1860 Foto: Reprodução / Reprodução

SÃO PAULO — A escravidão brasileira não cabe num Debret (1768-1848), com suas gravuras que retratam negros labutando para cima e para baixo no Rio do início do século XIX. Também são incompletos os manuais que associam a escravidão aos ciclos econômicos da colônia, como os engenhos de açúcar no Nordeste, o ouro nas Minas Gerais e os cafezais no interior de São Paulo.

“Não é possível nem falar em “escravidão no Brasil”, mas em “escravidões nos Brasis”, por conta das várias dimensões políticas, sociais e econômicas”

Flávio dos Santos Gomes
Historiador

Agora, o “Dicionário da escravidão e liberdade” (Companhia das Letras), organizado pela antropóloga Lilia Moritz Schwarcz e pelo historiador Flávio dos Santos Gomes, traz 50 ensaios escritos por estudiosos como Angela Alonso, João José Reis e Luiz Felipe de Alencastro, dissecando um sistema cheio de meandros que, naturalmente, os livros didáticos não chegam a contemplar. Analisam também as consequências da abolição, no momento em que se celebram os 130 anos da assinatura da Lei Áurea (em 13 de maio).

— A escravidão existiu ao longo de três séculos e meio, é muito complexa. Não é possível nem falar em “escravidão no Brasil”, mas em “escravidões nos Brasis”, por conta das várias dimensões políticas, sociais e econômicas — explica Flávio, professor da UFRJ e autor, entre outros, de “Mocambos e quilombos” e “O alufá Rufino”.

— Escolhas historiográficas antigas haviam associado uma forte presença da escravidão às áreas onde havia atividade econômica voltada para o mercado externo, como Nordeste canavieiro ou o café em São Paulo. A iconografia reproduzida à exaustão nos livros didáticos também ajudou a cristalizar essa ideia, mas houve uma presença africana importante em cidades como Porto Alegre e Belém.

“Teorias vieram para recriar a diferença entre os homens com argumentos científicos. Mas não é a biologia que explica a desigualdade histórica ou o racismo estrutural brasileiros”

Lilia Moritz Schwarcz
Antropóloga

TEMAS VÃO DE RELIGIOSIDADE À QUESTÃO DA MULHER

Dispostos em ordem alfabética, como um dicionário, os ensaios do livro são resultado do avanço das pesquisas historiográficas sobre a escravidão no Brasil nas últimas décadas. Acadêmicos passaram a contemplar temas como a religiosidade dos escravizados, as rebeliões, como era o cativeiro nas diversas regiões do Brasil, a situação da mulher escravizada e a coexistência da escravidão indígena e africana.

Negros e nativos eram companheiros no trabalho e na rebelião, como mostra um ensaio do próprio Flávio. Aliás, todos eram chamados de “negros”, que era sinônimo de escravizado. Os indígenas eram os “negros da terra” e os africanos, os “negros da Guiné”.

A aumento das pesquisas sobre a escravidão ocorreu no contexto da democratização brasileira e ascensão do movimento negro. Os novos estudos também ressaltaram o que os organizadores do livro chamam de dimensão “afro-atlântica” da escravidão, ou seja, como a escravidão brasileira se relacionava com a que existia na América Espanhola ou no Caribe.

— Essa dimensão afro-atlântica não é comparar a escravidão que houve aqui com a de outros lugares, mas mostrar como as economias escravistas estavam conectadas pela circulação de pessoas, experiências e saberes que vinham da África — diz Flávio.

Nos muitos ensaios dedicados ao período pós-abolição, estão detalhadas as dificuldades para incluir a população negra recém-liberta na vida formal da sociedade colonial. A Lei Áurea nada fez para reparar os três séculos de cativeiro, concordam os especialistas. A legislação do Império foi substituída por teorias científicas que afirmavam a inferioridade natural de negros e populações mestiças.

“A escravidão foi muito mais do que um modo de produção econômico. Foi uma linguagem com graves consequências, porque criou, no Brasil, uma sociedade com estruturas de mando arraigadas”

Lilia Moritz Schwarcz
Antropóloga

— As teorias raciais que entraram no Brasil no pós-abolição já não estavam em voga na Europa — diz Lilia, professora titular de Antropologia da USP que escreveu, entre outros, “O espetáculo das raças” e “Lima Barreto: triste visionário”. — No contexto de desmonte da escravidão, quando populações negras começavam a pleitear a cidadania, cientistas conhecidos afirmavam que a desigualdade entre os homens era biológica e que não era possível discutir com a biologia. Essas teorias vieram para recriar a diferença entre os homens com argumentos científicos. Mas não é a biologia que explica a desigualdade histórica ou o racismo estrutural brasileiros.

“ESTRUTURAS ARRAIGADAS”

Raimundo Nina Rodrigues, professor da Escola de Medicina da Bahia, chegou a propor dois códigos penais diferentes: um para brancos e um para negros. Logo após a abolição, uma frase significativa ganhou as ruas do Rio: “a liberdade é negra, mas a igualdade é branca”.

— A escravidão foi muito mais do que um modo de produção econômico. Foi uma linguagem com graves consequências, porque criou, no Brasil, uma sociedade com estruturas de mando arraigadas, um forte paternalismo. Fez da cor da pele um marcador de diferença social — reflete Lilia. — A gente fala que a escravidão nos legou o racismo, mas a verdade é que nós também temos recriado o racismo com força no Brasil. Um exemplo é o elevador de serviço e as placas “proibindo” qualquer tipo de discriminação. Lévi-Strauss dizia que não se cria uma regra se não há o desejo de burlá-la. Se até os dias de hoje é preciso, por lei, ter uma placa dessas, significa que o oposto é que é verdade. Ou seja, são marcas muito profundas.

LEIA TRECHOS ABAIXO

“Marcas profundas”

“A escravidão mercantil africana do período moderno é um sistema que (...) guarda marcas profundas no nosso cotidiano. O país não só foi o último a abolir essa forma perversa de mão de obra nas Américas, como aquele que mais recebeu africanos saídos de seu continente de maneira compulsória (...) Estima-se que 4,8 milhões de africanos tenham desembarcado no Brasil.”

Capa do livro "Dicionário da escravidão e liberdade" Foto: Reprodução / Reprodução
Capa do livro "Dicionário da escravidão e liberdade" Foto: Reprodução / Reprodução

Introdução, de Flávio Gomes e Lilia Schwarcz

“Revoltas com várias demandas”

“A revolta coletiva representou a forma mais radical de contestação da escravidão. Não que toda revolta almejasse a destruição do regime escravocrata. Muitas buscaram apenas corrigir excessos de tirania senhorial, diminuir até um limite tolerável a opressão, reivindicando benefícios específicos (...) — ou punindo feitores particularmente tirânicos.”

“Revoltas escravas”, ensaio de José João Reis

"Dicionário da escravidão e liberdade"

Organizadores : Lilia Moritz Schwarcz e Flávio Gomes. Editora : Companhia das Letras. Páginas : 496. Preço : R$ 74,90.