Rio Bairros

Câmara sanciona nova lei de regularização de loteamentos, mas prefeitura quer aprovar outras regras

Desde 2015, quando regras foram flexibilizadas, apenas dois processos de loteamentos em Jacarepaguá foram aceitos

Moradores do Residence Rodrigues Caldas dizem que já cumpriram todas as exigências da prefeitura
Foto: ROBERTO MOREYRA / Agência O Globo
Moradores do Residence Rodrigues Caldas dizem que já cumpriram todas as exigências da prefeitura Foto: ROBERTO MOREYRA / Agência O Globo

- Em 2015, quando foram promulgadas as leis municipais 160 e 161, flexibilizando as exigências para regularização de loteamentos e condomínios constituídos até 2013 na região das Vargens e de Jacarepaguá, milhares de moradores desta área da cidade tiveram esperança de finalmente legalizar seus imóveis. Desde então, porém, oficialmente apenas dois loteamentos, ambos de Jacarepaguá, conseguiram vencer a burocracia e estão prestes a obter a regularização. Em dezembro de 2016, a Câmara dos Vereadores propôs uma nova lei, de número 174, estendendo o prazo para a conclusão dos processos em 380 dias e também o alcance da medida, que passaria a valer para outras áreas da cidade, aprovada em março passado. O prefeito Marcello Crivela vetou-a, alegando que compete ao Poder Executivo dispor sobre o assunto, mas um novo capítulo desta saga teve início no último dia 9, quando a Câmara Municipal derrubou o veto de Crivella.

Com a ação final da Câmara, a lei, de autoria de Chiquinho Brazão (MDB), acabou sancionada, sob o número 188, mesmo diante da acusação da oposição de que beneficiava os grileiros. Agora, a prefeitura tenta aprovar os novos projetos de lei de uso, ocupação e parcelamento do solo.

Pela legislação vigente no momento, toda a cidade, com exceção da Zona Sul e do Centro, está contemplada pelas novas regras, que flexibilizam ainda mais as condições para a regularização de loteamentos, principalmente no que se refere à exigência de que sejam feitas obras de urbanização no seu entorno, como investimentos em iluminação pública, fornecimento de água e esgoto e asfaltamento. Segundo estimativas do gabinete de Brazão, de 40 mil a 50 mil imóveis na cidade poderão ser beneficiados. Pelas leis 160 e 161, a prefeitura diz ter recebido 111 protocolos de Vargens e 75 de Jacarepaguá.

Em audiência pública convocada para debater a lei 188 na Câmara, antes que os vereadores derrubassem o veto de Crivella, a subsecretária de Urbanismo, Valeria Hazan, representando a prefeitura, afirmou que o texto não leva em consideração os impactos ambientais da medida e não está alinhado com várias propostas incluídas nos projetos de lei complementar 57/2018 (Lei de Uso e Ocupação do Solo) e 56/2018 (Lei do Parcelamento do Solo), de autoria do Executivo, que estão em tramitação.

Para o vereador Renato Cinco (PSOL), que se posicionou contra a lei de Brazão, flexibilizações como essas impedem o planejamento urbanístico da cidade.

— O instrumento correto seria a transformação (dos locais a regularizar) em Áreas de Especial Interesse Social (AEIS), com levantamento técnico de cada caso. O problema dessa lei é quase dar uma carta branca ao loteteador irregular. O Rio foi construído assim: erguem o imóvel e depois a prefeitura vai lá e legaliza. Desse jeito fica difícil ordenar.

Lutando por um desfecho positivo. Moradores do Vale do Outeiro, na Taquara, deram entrada no processo para regularizar seus lotes, com base na lei municipal 161, de 2015 Foto: ROBERTO MOREYRA / ROBERTO MOREYRA
Lutando por um desfecho positivo. Moradores do Vale do Outeiro, na Taquara, deram entrada no processo para regularizar seus lotes, com base na lei municipal 161, de 2015 Foto: ROBERTO MOREYRA / ROBERTO MOREYRA

Brazão retruca.

— Essa lei vai atender a uma demanda antiga, de casas dentro do padrão, prontas para cumprir as exigências da legalização. Além disso, a prefeitura precisa arrecadar, e as pessoas querem pagar seus imóveis. Todos vão sair ganhando. E a lei veta tudo o que a prefeitura já vetaria, como (construções em) área de risco — alega o parlamentar, dizendo enxergar motivação política no atraso das regularizações de imóveis que deram entrada no processo ainda em 2015. — Parece até sem nexo, porque quem deveria lutar pela regularização é a prefeitura, e não os moradores. O executivo permitiu que eles se instalassem ali e agora tem que regularizá-los ou abrir um debate. Somente a Lei de Uso e Ocupação do Solo não é suficiente.

Quanto à acusação de favorecer grileiros, o vereador se defende alegando que a lei recém-promulgada só se refere aos imóveis já existentes. Como nas leis 160 e 161, o texto da 188 diz que apenas as construções erguidas até 2013 (verificadas na ortofoto daquele ano) são passíveis de legalização.

Enquanto a disputa política se desenrola, as Vargens e Jacarepaguá aguardam. Os moradores da área de Jacarepaguá são os mais otimistas, já que no bairro a urbanização é maior, o que reduz as exigências de adequação feitas pelo poder público e facilita os processos. O anúncio de que dois loteamentos de Jacarepaguá tinham conseguido o aceite de seus processos de regularização foi feito na semana passada pela subsecretária Valeria Hazam em uma reunião com uma comissão da região. Procurada, a Secretaria de Urbanismo informou que um dos loteamentos contemplados fica na Rua Treze Tílias, no Anil, e o outro, na Rua Camarucu, em Jacarepaguá.

Segundo Valéria, muitos dos loteamentos que entraram com pedido de regularização não apresentaram toda a documentação exigida ou não se enquadram nas novas leis: são os casos de terrenos onde há uso comercial ou multifamiliar, pois as 160 e 161 só permitem a legalização de edificações unifamiliares ou bifamiliares. Sobre as alternativas para a regularização desses loteamentos, já que a prefeitura não concorda com o texto recém-aprovado, a subsecretária cita três frentes de trabalho:

— A reanálise, de forma centralizada, dos processos de pedidos de legalização através das leis 160 e 161; a conclusão de estudos para compatibilizar a legislação municipal com a regulamentação da lei federal nº 13.465/2017 (segundo a qual os municípios devem regularizar os loteamentos), que viabilizará a solução de diversos processos; e o encaminhamento à Câmara Municipal dos projetos de lei para o Uso e Ocupação do Solo, Parcelamento do Solo, Licenciamento e Fiscalização e Código de Obras, que trarão simplicidade e atualidade à legislação urbanística de toda a cidade — afirma Valéria.

Em Jacarepaguá, casos são menos complicados

O Residence Rodrigues Caldas, na Taquara, é um exemplo de loteamento fechado com casas de bom padrão e sem problemas de estrutura no entorno, o que, em tese, facilitaria sua legalização. A irregularidade vem de sua formação. O proprietário do terreno dividiu a área total oficialmente em 19 lotes, mas, na prática, permitiu que, ao longo do tempo, o número de residências subisse para 94.

— Se fossem só 19 lotes, conseguiríamos atender à legislação. Mas com 94 ficamos na ilegalidade. Hoje, existem registros dos 19 lotes. Quando o IPTU destes 19 chega, precisamos dividir o pagamento entre todos os moradores — explica Patrícia Santiago, que vive no Residence desde 2010 e foi síndica até 2016. — Nossa luta vem desde 2002, quando começou o processo administrativo na Secretaria de Urbanismo. Hoje, se alguém quiser vender um imóvel aqui, terá mais dificuldade, pois a Caixa não vai liberar financiamento para o comprador. As pessoas acabam facilitando o pagamento de outras maneiras, concordando em receber, por exemplo, um carro ou outro bem como parte do pagamento.

O Residence deu entrada na prefeitura pedindo sua legalização com base na lei 161 (2016), mas até hoje não obteve resposta. Na opinião de Patrícia, não há motivo para o condomínio continuar na informalidade:

— A lei veio para facilitar nossa situação, mas esbarrou em entraves políticos. Cumprimos todas as exigências.

A atual síndica do Residence, Alessandra Silvares, diz que o problema é a prefeitura ir fazendo novas exigências periodicamente, o que torna impossível saber quando o processo vai acabar.

— Na última audiência pública, eu disse que o nosso condomínio poderia ser um exemplo. Nós cumprimos as pendências de Parques e Jardins, esgoto etc. E levamos vantagem porque nossos lotes estão registrados, enquanto muitos vizinhos não têm esse documento, o que atrasa o processo. Acredito que já cumprimos todas as exigências, mas, em vez de a prefeitura pedir tudo de uma vez, vai fazendo novas solicitações, o que atrasa o processo.

No aguardo. Jardim de Itaúno, em Vargem Grande, quer se regularizar Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo
No aguardo. Jardim de Itaúno, em Vargem Grande, quer se regularizar Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

O sentimento de frustração também está presente no Vale do Outeiro, outro condomínio da Taquara. Moradora do local há 20 anos, Marlene Martins diz que os moradores lutam pela legalização há cerca de dez, com processo administrativo na SMU. Após a promulgação da lei 161, o condomínio iniciou um novo processo, mas ainda não foi atendido.

— Uma vez fui a um cartório e disseram que faltava pouca coisa para legalizar, mas o documento nunca saiu. O que nós temos é o RGI total do terreno. Todo mundo precisa fazer vaquinha para pagar o IPTU — explica Marlene.

Especialistas apontam falhas

A flexibilização das exigências para a regularização de imóveis tem sido alvo de críticas de especialistas. A comissão de Direito Urbanístico da OAB-Barra chegou a escrever um anteprojeto para a lei 160, propondo a revisão de alguns pontos. Para a comissão, havia uma série de falhas no texto original, como o artigo segundo o qual propriedades não legalizáveis serão desapropriadas pela prefeitura, ou seja, o poder público indenizará os responsáveis por elas. Para a comissão, esse artigo pode favorecer grileiros, pois loteamentos irregulares seriam indenizados, quando as medidas corretas seriam a notificação e o embargo. Além disso, argumentam, a fiscalização é de responsabilidade do Executivo, e não do Legislativo. A lei 188 revogou o artigo 10 da 160, que dizia que o Legislativo entregaria ao município uma listagem com loteamentos irregulares flagrados.

O urbanista Canagé Vilhena, morador de Vargem Grande, enxerga outras falhas na legislação atual. Segundo ele, a lei 188 é confusa e imprecisa ao tratar de loteamentos e condomínios.

— Loteamento é um antigo terreno que foi dividido. A partir disso, as novas unidades são individuais. Já o condomínio é um terreno que não foi dividido, uma propriedade particular, com copropriedades. O parcelamento do solo não prevê copropriedade. Mas aí o artigo 9 da lei 188 diz que, após a regularização, a secretaria deve informar se a ocupação é loteamento, grupamento ou vila. Acontece que esta lei só contempla loteamentos — explica Canagé.

Para ele, as leis de 2015 e 2016 foram criadas com finalidade eleitoreira, já que só beneficiavam as Vargens e Jacarepaguá, áreas muito restritas da cidade. O urbanista é descrente ainda da eficácia da lei 188, alegando que, para dar entrada na regularização, o morador precisa apresentar algum título de propriedade, mesmo que do lote total, o que em muitos casos é impossível e justifica a baixa adesão ao processo de regularização e a ausência quase total de legalizações até aqui. Para Canagé, a melhor solução seria a transformação das áreas a serem legalizadas em AEIS.

— Na audiência pública, a prefeitura disse que só 20% dos 170 loteamentos que deram entrada nos pedidos conseguiram atender às exigências. Quem não tem título de propriedade não vai conseguir. Era preciso haver um tratamento especial para esses casos, através de AEIS. Outra pendência que pode atrapalhar são os autos de infração. Como são irregulares, os loteamentos devem ter sido multados em algum momento da prefeitura. Será que isso foi pago? Ou está na Dívida Ativa?

Na opinião de Rogerio Appelt, morador de Vargem Grande e membro da comissão de moradores que luta pelas regularizações, as multas não representam uma pendência relevante.

— Como os valores eram pequenos, acho que não prosperaram. E a prefeitura tem prazo para cobrá-los judicialmente— afirma.

Appelt esteve na reunião com a secretária Valéria Hazan na semana passada e definiu o encontro como produtivo. Depois de muitos anos de luta pela regularização, ele compartilha do sentimento de frustração de outros moradores, que não enxergam fim no túnel dos processos administrativos, mas acha que, agora, com a lei 188, as legalizações podem avançar.

— Quando começarem a legalizar de fato, as pessoas devem se motivar a dar entrada nos processos. A verdade é que o debate está acalorado, mas a própria lei federal obriga a prefeitura a resolver esse passivo. É uma demanda antiga, que precisa ser atendida — explica Appelt.

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