Política Crack

Um ano após ação polêmica da prefeitura de SP, Cracolândia sofre com nova crise

A poucos metros da ocupação que desabou, novos prédios que excluem moradores do Centro e usuários de crack expõem problemas sociais

Retrato do fluxo da cracolândia
Foto:
Edilson Dantas
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Agência O Globo
Retrato do fluxo da cracolândia Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO - Sentada com os pés no único sofá que sobrou, Janaína Xavier, de 38 anos, ajudava os vizinhos a juntarem alguns pertences. Era mais uma desapropriação num casarão ocupado por famílias no Centro de São Paulo , a menos de dois quilômetros do Edifício Wilton Paes de Almeida , invasão que desabou na madrugada do último dia 2. Bem perto dali, no território conhecido como Cracolândia , despontam 3.683 unidades habitacionais construídas nos últimos meses para abrigar uma população que não necessariamente vem da região central da cidade.

O ritmo das obras se acelera, assim como os desalojamentos. É uma nova crise na região que já convive, desde os anos 1990, com o consumo e a venda de crack nas ruas. E que, há um ano, foi alvo de uma ação polêmica comandada pelo então prefeito João Doria (PSDB), hoje candidato ao governo do Estado, sem dar uma solução definitiva para moradores, ocupações e usuários na região. A Cracolândia ainda é uma bomba relógio.

Existe uma nova crise na região que já convive, desde os anos 1990, com o consumo e a venda de crack nas ruas. E que, há um ano, foi alvo de uma ação polêmica comandada pelo então prefeito João Doria (PSDB), hoje candidato ao governo do Estado, sem dar uma solução definitiva para moradores, ocupações e usuários na região. A Cracolândia ainda é uma bomba relógio.

Cosme Aleixo da Silva, de 54, mora numa invasão na região de Campos Elíseos há 10 anos e se diz desamparado. Para ele, os apartamentos erguidos por prefeitura e governo, numa Parceria Público-Privada (PPP), desconsideram quem nasceu ali e vive com até um salário mínimo.

— Há todo um interesse imobiliário envolvido. O governo não quer pobre morando na região — diz Cosme, enquanto acompanha a desocupação no terreno da Quadra 36, onde até 2021 se erguerá o hospital estadual Pérola Byington, referência no atendimento à mulher.

A obra dessa unidade é também uma PPP, da Secretaria Estadual da Saúde. O coordenador do projeto, Ricardo Tardelli, assegura que as 163 famílias moradoras do terreno vão receber auxílio-moradia de R$ 400 até que se chegue a uma solução definitiva para elas. O valor, afirma Cosme, não cobre um aluguel no Centro.

As mais de três mil unidades habitacionais construídas ali perto não desabrigaram ninguém, garante a secretária executiva da PPP da Habitação estadual, Andra Robert. Mas também não contemplaram pessoas do perfil de Cosme e Janaína. Serão 2260 unidades de interesse social e 1423 de mercado popular, ou seja, de livre comercialização. Além disso, 80% dessas unidades são para famílias que moram fora da região central, mas trabalham ali. O restante é para quem comprove residência e trabalho no Centro. Todos com renda entre um e seis salários

Enquanto isso, a secretaria municipal da Habitação contabiliza 45,9 mil famílias vivendo em 206 ocupações somente na cidade de São Paulo. No Centro, são 53 invasões, com 3,3 mil famílias.

Segundo Andra, essa PPP foi pensada em quem gasta maior tempo no transporte para trabalhar e defende que não é possível, num mesmo programa, resolver questões que resultam do déficit habitacional da cidade:

— Não estamos tirando ninguém do Centro. Estamos dando a oportunidade a várias famílias que um dia moraram na região e saíram exatamente pelo boom imobiliário.

Para tentar solucionar o problema de quem não preenche os requisitos para as PPPs, 26 instituições e profissionais de várias áreas formularam um estudo que aponta 23 terrenos desocupados no Centro onde poderiam ser construídas três mil moradias.

— Há uma lógica econômica que não consegue incluir essa população de baixa renda — conclui a engenheira Talita Gonsales, integrante do chamado Fórum Mundaréu da Luz.

Em nota, a secretaria municipal de Habitação (Sehab), diz que tem hoje um modelo pronto, "rápido e eficiente" para construção de moradia social na região e que visa o direito de moradia das famílias no mesmo local.

A poucos quarteirões dali, usuários de crack também esperam trocar as ruas por um teto.

— Eles falam que vão tirar todo mundo daqui. Vão colocar onde? Na casa deles? — questiona José Ilson Barbosa, um mecânico de 29 anos e há dez dependente do crack.


José Ilson Barbosa, um mecânico de 29 anos e há dez dependente do crack
Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
José Ilson Barbosa, um mecânico de 29 anos e há dez dependente do crack Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Com uma tatuagem que cobre o antebraço com a frase “Só Deus sabe a minha hora”, o morador do fluxo há quatro anos afirma que, se tivesse uma casa, deixaria o vício.

Barbosa vivia com os pais na Vila Formosa, Zona Leste de São Paulo, quando conheceu o crack. Diz que há dois meses pediu para ser internado, e foi levado para o Hospital Cantareira, de onde saiu no início de abril. A unidade é conveniada ao programa municipal Redenção, criado por Doria para usuários de drogas na cidade. Em agosto, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) apontou irregularidades no local. Os termos de consentimento de tratamento seriam vagos, conforme consta no relatório deles, além de outras questões.

— Tomava 12 remédios todo dia. Não aguentei. Estava ficando mais louco do que na rua. Não é uma clínica que te ajuda com oração ou outra coisa — reclamou Barbosa.

A Cracolândia

Na rua bloqueada por policiais, os únicos carros que passam são os das forças de segurança, enquanto no trânsito de pessoas vê-se consumo e venda de crack, assistência social, camelô e até roda de capoeira. São poucos metros para um cenário com um sem fim de histórias.

O psiquiatra Arthur Guerra, especialista em dependência química, explica que poucos escapam de uma “dependência gravíssima” após a primeira pedra, que custa em média R$ 5. Coordenador do Redenção, ele afirma que o projeto tenta oferecer atendimento mais qualificado e garante que as mais de 5,3 mil internações feitas pela nova gestão da prefeitura são voluntárias.

— Tratamos os pacientes como gostaríamos que fôssemos tratados — pondera.

Em outros lugares do mundo como Vancouver, no Canadá, e Nova York, nos EUA, para solucionar o problema de usuários espalhados pelas ruas, foram criadas as chamadas "salas de uso". É um trabalho de redução de danos: ninguém é obrigado a se tratar. Ao contrário. É dada segurança e saúde para os consumidores de heroína ou cocaína.

Para a coordenadora sênior do Programa de Saúde Pública da Open Society Foundations, Sarah Evans, a redução de danos traz efeitos mais concretos e positivos do que uma internação forçada. O que as pessoas precisam primeiramente, aponta ela, é ter acesso a serviços que lhe deem estabilidade:

— As pessoas devem ter acesso a tratamento quando estiverem prontas. Não concordo em trancá-las em clínicas psiquiátricas, e há muitas evidências de que isso não funciona.


A assistente social Carmen Lopes critica a ação do ano passado
Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
A assistente social Carmen Lopes critica a ação do ano passado Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Em 2014, o então prefeito petista Fernando Haddad implementou algo semelhante, com o De Braços Abertos (DBA). O programa oferecia um quarto de hotel, três refeições diárias e trabalho de varrição de vias públicas para usuários de crack cadastrados. Um ano depois, pesquisa da Open Society revelou que 65% dos 467 beneficiários disseram ter diminuído ou interrompido o consumo no local graças ao programa.

Com a troca de governo, o DBA foi desmantelado, dizem organizações. Maria Angélica Comis, psicóloga e coordenadora do centro de convivência “É de lei”, trabalhou na secretaria de Direitos Humanos entre 2014 e 2017. Ela conta que as ações policiais se intensificaram na cena de uso e tornaram os vínculos mais difíceis:

— Os trabalhadores passaram a sofrer violência no território.

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A assistente social Carmen Lopes endossa. Ela trabalhou no local entre 2013 e 2018:

— Aquela ação do dia 21 foi um total despreparo. Olharam como se ali só houvesse usuário e traficante, e não famílias, crianças, comerciantes. Esse tempo que estou aqui me deixa um pouco descrente, porque você vê como o poder público abandona as pessoas.

A prefeitura atual discorda, e diz que os hotéis do DBA eram insalubres e dominados pelo tráfico. O órgão mostra relatório apontando que a ação reduziu de 1861 para cerca de 414 usuários no fluxo. Os números são de julho, da secretaria estadual de Desenvolvimento Social (SEDS) com o Programa das Nações Unidas (Pnud).

O secretário municipal de Assistência Social Filipe Sabará afirma que hoje o trabalho de redução de danos é maior, mas aponta que os problemas só serão solucionados se a sociedade civil participar ao lado do poder público:

— O poder público tem um papel, que é viabilizar atendimento, acolhimento, tratamento de saúde e garantir direitos, mas quem emprega, faz trabalho voluntário, é a sociedade civil.

Quanto aos conflitos no local, o coordenador do policiamento no entorno, tenente Gustavo Botelho, explica que o trabalho da Polícia Militar é sufocar o tráfico de drogas, e que a ação de maio foi um divisor de águas para que a quantidade de usuários e de traficantes diminuísse. Os embates, justifica ele, se dão como resposta dos usuários contra as prisões:

— Mas de forma alguma acontecem abusos.

Dados da PM apontam que somente a companhia de força tática do 13º batalhão (Campos Elísios) prendeu 454 pessoas local em 2016, antes das intervenções. No ano passado foram 396 e até agora, em 2018, somaram 245 presos, por diversos motivos.

Agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM) também são acusados de agressão. Em janeiro, o frei Agostino, que atua pelos direitos humanos dos moradores de rua, foi detido por guardas por desacato à autoridade. No dia, ele relatou truculência na abordagem dos agentes. A Corregedoria da GCM está apurando seis denúncias por suspeita de uso abusivo da força feitas nos últimos 12 meses. Para o religioso, a resposta para o problema é trabalhar com humanismo.

— É preciso saber que cada indivíduo tem uma necessidade e uma história — diz o frei.