Blog do Mauro Ferreira

Por Mauro Ferreira, G1

"Cantem comigo!", pediu a (boa) cantora Andrea Marquee enquanto dava voz ao samba Chega de Saudade (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1958) no palco do Teatro Adolfo Bloch, recém-reativado na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Não foi preciso insistir para que o público cantasse com Marquee os versos desse samba referencial que há 60 anos marcou o início oficial da revolução estética da Bossa Nova na gravação feita em julho de 1958 por João Gilberto e lançada em agosto daquele ano.

Mais tarde, já no segundo ato, outra cantora – Eduarda Fadini, de voz e interpretação expressivas – fez pedido semelhante enquanto cantava outro samba, Pra que chorar? (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1963). Também foi atendida de imediato.

Esses dois momentos ocorridos ontem, 12 de maio de 2018, na sessão das 17h d'O musical da Bossa Nova expõem a natureza do espetáculo ora em cartaz de sexta-feira a domingo no Rio de Janeiro, cidade natal da bossa, em turnê que passa desde 2017 pelas principais cidades do Brasil. Em bom português, O musical da Bossa Nova é show teatralizado, não um musical, ainda que tenha textos do pesquisador musical Rodrigo Faour e do diretor Sérgio Módena entre os 54 números musicais distribuídos em dois ágeis atos.

Contudo, esses textos são pílulas com informações e frases filosóficas (do tipo "Bossa nova é um olhar intimista sobre a vida, mesmo em situação difícil") que procuram contextualizar social e musicalmente a gênese, a explosão e as consequências do movimento que mudou a música do Brasil e impactou o mundo na figura de João Gilberto, o cantor de voz e violão revolucionários, evocado em cena pelo ator Claudio Lins – como visto na foto de Caio Gallucci – na interpretação de Corcovado (Antonio Carlos Jobim, 1960).

Sem consistência dramatúrgica para erguer teatralidade típica de musical, o roteiro – de encadeamento frouxo – se sustenta na beleza atemporal do cancioneiro da Bossa Nova, geralmente tratado com a devida reverência pela diretora musical Delia Fischer e apresentado nas vozes de elenco afinado formado por Andrea Marquee, Ariane Souza, Claudio Lins, Eduarda Fadini, Juliana Martins, Jullie, Stephanie Serrat, Marcelo Varzea, Nicola Lama e Tadeu Freitas.

Cláudio Lins e Andrea Marquee no espetáculo 'O musical da Bossa Nova' — Foto: Divulgação / Caio Gallucci

O conjunto soa harmonioso, embora haja naturalmente eventuais destaques no desfile de músicas, como o solo quase a capella de Ariane Souza em Opinião, samba de autoria somente de Zé Kétti (1921 – 1999) também creditado equivocadamente no programa do espetáculo a Corisco, nome da editora na qual o compositor carioca registrou o samba de 1964. Embora tenha sido lançado na voz antenada da musa involuntária da bossa, Nara Leão (1942 – 1989), Opinião nada tem a ver a rigor com a bossa nova como gênero musical, mas o samba é apresentado no roteiro como exemplo do engajamento social da bossa na primeira metade dos anos 1960.

É uma contextualização tão questionável como o fato de situar a MPB como um desdobramento da Bossa Nova na era dos festivais. Sem apresentar informações em ordem cronológica, o roteiro desconexo aborda essa fase engajada da bossa depois do encontro de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) com o cantor norte-americano Frank Sinatra (1915 – 1998) em disco de 1967.

Mas pecado maior é induzir o espectador a supor que a canção Eu sei que vou te amar (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1956) fez parte da trilha sonora do espetáculo Orfeu da Conceição (1956), marco inaugural da parceria de Tom com Vinicius de Moraes (1913 – 1980). Afinal, a canção é apresentada logo após a fala sobre a abertura dessa fundamental parceria por conta do musical.

Já a tentativa de extrair humor do dramalhão dos sambas-canção dos anos 1950 soa risível pela razão errada. Fosse somente um show em que as músicas falassem por si só, e a maior parte das letras desse cancioneiro já elucida o universo que se abriu em 1958, O musical da Bossa Nova teria resultado mais coeso. Porque os números musicais são, em geral, sedutores por conta da beleza atemporal das canções.

Claudio Lins cai certeiro no suingue do samba Influência do jazz (Carlos Lyra, 1962), mas acerta com menor precisão o tom do pioneiramente moderno samba-canção Copacabana (João de Barro e Alberto Ribeiro, 1946) – proeza conseguida quase que somente por Dick Farney (1921 – 1987), intérprete que arejou o gênero na segunda metade da década de 1940. Andrea Marquee e Eduarda Fadini dão vibração a Estamos aí (Durval Ferreira, Maurício Einhorn e Regina Werneck, 1965). Em contrapartida, o samba Rapaz de bem (1960), também confiado à voz de Fadini, poderia ser apresentado com mais leveza, em sintonia com o espírito da obra de Johnny Alf (1929 – 2010).

Apesar de todos os pesares, O musical da Bossa Nova cumpre a função de entreter um público menos exigente que quer somente ouvir essas canções que soam novas como há 60 anos. É por isso que a plateia aceita prontamente o convite de Andrea Marquee para acompanhar a cantora nos versos de Chega de saudade. Chega mesmo? Não, pelo que se vê nos palcos nacionais, bastante pautados pelo sucesso popular de musicais que são abastecidos justamente pela indústria da saudade musical. (Cotação: * * 1/2)

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