Trajetórias de restaurantes pioneiros na Barra ganham destaque inclusive em livros

Casas como Ettore e Bar do Oswaldo têm suas histórias atreladas às do bairro

por Carolina Callegari / Rodrigo Berthone

Unidade do La Mole na Barra tem 44 anos. Rede comemora seis décadas de fundação com livro - MARCOS DE PAULA / Agência O Globo

RIO - “A Barra tem, sim, história, e muita. As pessoas só não a conhecem”, declara Rommel Cardozo, filho do fundador do Bar do Oswaldo, um dos pioneiros do bairro. A casa, de frente para o Largo da Barra, mantém a identidade apesar do passar das décadas, uma característica em comum com outros restaurantes da região que resistem ao tempo. As mesas acumulam histórias; e os estabelecimentos, fama. As trajetórias são dignas de desbravadores que apostaram alto numa região onde, décadas atrás, praticamente só havia mato, estradas de terra batida, dunas e motéis. E começam a ganhar registros, para que não sejam esquecidas.

La Mole

Seu Chico na unidade do La Mole na Barra, inaugurada há 44 anos - MARCOS DE PAULA / Agência O Globo

O La Mole se prepara para narrar sua trajetória de 60 anos com o lançamento de um livro, além de cardápio especial e material comemorativo. A unidade da Barra foi inaugurada há 44 anos. Ao falar da rede, o proprietário, Francisco Rego (o Seu Chico), é direto: diz que se vê como um sobrevivente.

Quando ele nem sonhava ter 17 unidades, não faltou quem tentasse desestimular a abertura de uma segunda casa — justamente a da Barra —, 18 anos após a abertura da primeira, no Leblon. O ponto na Avenida Armando Lombardi foi sugestão de um cliente, que o levou de carro para ver o terreno onde funcionava uma boate. A proposta de compra não foi bem aceita pelo proprietário da casa noturna, inicialmente. Passados alguns meses, porém, ele mudou de ideia.

Seu Chico chegou ao La Mole em 1958, aos 16 anos, quatro meses depois da inauguração da matriz. Após a morte do fundador da marca, o italiano Domenico Magliano, em 1962, acabou se tornando sócio da viúva dele, Roseta.

— Eu queria investir, mas Dona Roseta não. Ipanema, um dos bairros em que pensei, já era caro e tinha poucas vagas de estacionamento. Conversando com um cliente, ele me sugeriu esse ponto. Era uma região com muitos motéis, alguns até hoje em funcionamento. As pessoas não acreditavam que o restaurante ia vingar. Ficavam dizendo: “O Chico é maluco” — conta.

A inauguração do La Mole foi um acontecimento no bairro - Arquivo pessoal

Sentado em uma das mesas do salão interno da filial da Barra, ele desfia muitas outras histórias. Quando quis reforçar a fundação da obra, antecipando a construção de um segundo andar, no futuro, foi olhado com surpresa e descrença pela equipe da construção. Engenheiro, calculista e arquitetos tentavam convencê-lo a desistir do projeto enquanto era tempo. A estrutura era gigantesca para a época, e ele estava pensando em expansão. Mais tarde, a unidade chegou a reunir a lavanderia e a central de delivery da rede.

Concluída a obra, Seu Chico festejou e teve alguma dor de cabeça. No primeiro fim de semana de funcionamento, parte da equipe não aguentou a pressão da casa cheia e da longa fila de espera.

— A avenida (Armando Lombardi) tinha só uma pista, era de terra. Só passava por aqui quem ia para lugares como Jacarepaguá. Garçons desistiram de trabalhar nesses primeiros dias. Eles saíam com o uniforme, atravessavam a rua e ficavam esperando ônibus. Demorava muito — diz, rindo.

No mesmo ano, nasceu seu filho caçula, Bruno. Ele e os irmãos, Rodrigo e Leonardo, atualmente dividem a administração com o pai. As famílias, por falar nelas, têm papel fundamental na história da rede: compõem a maior parcela do público. Muitos patriarcas começaram a frequentar o local ainda meninos, e hoje continuam atrás de clássicos como o arroz à piemontesa, receita de Dona Roseta.

— Ela pegava requeijão e ovo e misturava ao arroz. Queria fazer o risoto à moda italiana, mas não tinha os ingredientes certos, e foi testando. A receita mais tarde foi mudada, e passou a ser feita com creme de leite e queijo — lembra Seu Chico, apontando o atendimento como outro ingrediente infalível. — Dentro da simplicidade, oferecemos um serviço que deixa o cliente satisfeito. No início, quando não tínhamos entrega, eu levava alguns pedidos a pé.

Ettore

Primeiro letreiro do então Pastifício Ettore, no início da década de 1980 - Arquivo pessoal

A Avenida Armando Lombardi ainda era de terra batida em 1981, quando Ettore Siniscalchi abriu o que viria a se tornar um dos restaurantes mais tradicionais da região. Inaugurado inicialmente como uma loja de massas, molhos, antepastos e frios, o Pastifício Ettore se resumia a uma portinha no Condado de Cascais, cujo balcão era repleto de massas artesanais e doces sortidos, fabricados no andar de cima da loja. A ideia era que o cliente escolhesse a quantidade desejada de ravióli, cappelletti, panzarotti ou tortellini e levasse para casa. Mas Ettore, então com 26 anos, percebeu que muitos adoravam ficar por ali, beliscando um queijo e tomando um vinho enquanto esperavam novas fornadas. Alguns lhe pediam que preparasse as massas lá mesmo. Um mesão de cedro de 16 lugares, colocado nos fundos da loja, e que hoje ainda está no restaurante, era onde eles degustavam as massas. Estava nascendo o Ettore Cucina Italiana.

A casa mantém outras tradições, como os jogos americanos em que há uma reprodução da pintura “A ceia de casamento”, do belga Pieter Brueguel, datada de 1568, que mostra uma confraternização de camponeses em volta de um mesão parecido com o do restaurante.

Os proprietários, Ettore Siniscalchi e Mary Viriato, procuram estar diariamente no restaurante: atentos aos clientes - ROBERTO MOREYRA / Agência O Globo

O Ettore passou a chamar a atenção do restante da cidade quando recebeu quatro estrelas de um importante crítico gastronômico que escrevia para o “Jornal do Brasil” com o pseudônimo de Apicius. Até então, boa parte dos clientes era formada por moradores de outros bairros que mantinham casas de veraneio na Barra.

Quase quatro décadas após a abertura, Ettore e a mulher, Mary Viriato, batem ponto diariamente no restaurante, que ocupa, atualmente, quatro lojas no Condado de Cascais. Para ele, o relacionamento com os clientes é motivo de orgulho.

— Há famílias que estão na quarta geração de frequentadores. Desenvolvemos uma relação muito especial. Temos garçons com 30 anos de casa que sabem o gosto deles, o ponto da carne, a massa que preferem. Isso faz diferença. Nosso desafio diário é fazer o cliente voltar e se lembrar do que provou anteriormente — garante Ettore, que, durante a juventude, trabalhou no Tarantella, outro restaurante pioneiro da Barra, aberto por seu pai.

Lucas Viriato, filho de Ettore, editou em 2012 o livro “Ettore 30 anos — Uma saga gastronômica”, escrito por Carla Muhlhaus. Agora, prepara o da rede La Mole. Segundo ele, a atmosfera familiar do Ettore é seu diferencial:

— Hoje, os restaurantes são vistos como um negócio. Acaba que o restaurante não é de ninguém, é de um clube de investidores, e nunca tem alguém de fato na casa. Aí você reclama com quem quando a massa não está no ponto que você gosta? No Ettore, você fala direto com meus pais.

Bar do Oswaldo

A batida de coco, ou branca de neve, é a campeã de vendas até hoje - MARCOS DE PAULA / Agência O Globo

No Bar do Oswaldo também é assim. Foi o pai de Rommel Cardozo, hoje à frente do negócio, que inaugurou a casa. Quando Oswaldo Cardozo chegou à Barra, em 1946, era tudo mato. Mesmo. Era o trabalho como segurança de Getulio Vargas que o levava à região, onde o então ex-presidente costumava jogar golfe. As idas ao lugar inóspito onde mais tarde cresceria o Largo da Barra fizeram-no conhecer um português que estava construindo um bar e procurava um sócio. Oswaldo vendeu caminhões que tinha e entrou na sociedade. Ao fim de um ano, o português desistiu da empreitada, mas Oswaldo ficou firme.

Revendo fotos, cartas e documentos, Rommel conta como viu o bairro mudar e fala da participação do pai no processo:

— Aqui não tinha água nem luz. Meu pai foi um dos envolvidos em cobrar melhorias como um cano de água para o abastecimento e instalação elétrica. Ele escolhia garçom pelo braço: dizia que não podia ser fraco, porque sempre tinha briga.

Rommel também pensa em reunir as histórias do Oswaldo em livro. As batidas deram fama ao bar e foram causadoras de filas de carros nas décadas de 1970 e 1980. As garrafas eram postas sobre os capôs e consumidas por lá mesmo. A bebida era uma adaptação do coquinho, vendido anteriormente, forte demais para o paladar da maioria das mulheres. O coco, com cachaça, era enterrado durante dias, para curtir e pegar o sabor. A primeira batida foi a Branca de Neve, surgida da mistura do coquinho com vodca, combinação vencedora de muitos prêmios e campeã de vendas até hoje.

Rommel (à esquerda) e Marcello comandam o Bar do Oswaldo - MARCOS DE PAULA / Agência O Globo

A região, então frequentada quase que exclusivamente por casais liberais, só tinha motéis e bares. E o Bar do Oswaldo, com seu ambiente fechado, além de boa diversão, garantia um lugar reservado a quem queria se esconder. Com o tempo, o salão ganhou mais janelas e teve uma parede derrubada. Os bancos ainda são os originais; foram apenas reformados. O segundo andar, onde antes havia o quarto vermelho, para casais em busca de pernoite, foi transformado em área administrativa.

As imagens em preto e branco guardadas com carinho, em pastas, pelo filho do desbravador Oswaldo mostram uma Barra sem prédios e ruas. Um adesivo pedindo que o eleitor diga “não” à emancipação da Barra do restante do Rio de Janeiro e uma foto veiculada numa revista americana quando Walt Disney visitou a cidade em busca de inspiração para criar o personagem Zé Carioca, com o bar ao fundo, são alguns registros. Outro mostra a limpeza do campo da lagoa (atual Rio Beach Club), que então pertencia ao Barra da Tijuca Futebol Club.

Rommel conta ter sido preciso se adequar à passagem do tempo, mantendo os ouvidos atentos aos pedidos dos clientes e os olhos voltados para as novidades dos concorrentes. Hoje, a casa tem uma bike para levar as famosas batidas para eventos. Há 30 anos trabalhando no bar, Marcello, neto de Oswaldo e sobrinho de Rommel, diz que a repaginação foi necessária, mas seria desaprovada pelo avô.

Localização remota e batidas eram atrativos no Bar do Oswaldo - Ignacio Ferreira/6-2-1988 / Agência O Globo

— Tem que se renovar; senão, você não anda. Meu avô não colocaria uma torneira de chope ou cerveja. Mas, sem elas, o bar não aguentaria. Não podemos parar no tempo. O que buscamos manter sempre é a qualidade, acima de tudo — salienta.

Após a morte de Oswaldo, em 2000, nove sabores de batidas entraram na carta, incluindo as de açaí e café, esta última com receita tirada diretamente de um sonho de Rommel. Desde um protesto feito por moradores da Rocinha em 2009, quando a Autoestrada Lagoa-Barra foi fechada, diz ele, houve queda de cerca de 30% na frequência do bar, que atrai público de toda a cidade. O que motivou a criação de um cardápio mais amplo, com pratos e feijoada nos fins de semana.

— Mas sem perder a essência — afirma Rommel, categórico. — Temos que marcar o que somos. É por isso que nos mantemos aqui até hoje.

Churrascaria Oásis

O maître Leonir Milani, o Magal, na churrascaria Oásis, a única de São Conrado - MARCOS DE PAULA / Agência O Globo

Entre o coração da Zona Sul e a Barra, outros dois restaurantes ajudaram a pavimentar a expansão para o bairro. Há 39 anos, São Conrado viu a Churrascaria Oásis abrir as portas e lançar moda: foi o primeiro restaurante da região dedicado às carnes. A churrasqueira a carvão, como manda a tradição de um bom preparo, ajuda a explicar a longevidade.

Em quase quatro décadas, a rotina das famílias mudou. Os encontros aos domingos em grandes mesas têm ficado mais raros, mas uma parcela mantém a tradição, observa o maître Leonir Milani, o Magal, que trabalha na unidade desde 1993.

— No passado, havia muita criança. Agora, o público é de idades mais variadas. Temos clientes que vieram aqui a vida toda e são mais frequentes. Já vi muitos namorados ficarem noivos, se casarem e voltarem com os filhos, que agora já estão grandes. Nos últimos dez anos, percebi a mudança. Antes o programa de domingo era ir à churrascaria — aponta Magal.

Churrascaria passou a diversificar o serviço, com mais itens no bufê, como comida japonesa e mais fartura de salada - MARCOS DE PAULA / Agência O Globo

As modificações chegaram também ao cardápio. A partir da demanda da clientela, o bufê tornou-se mais variado, com mais opções de acompanhamentos, maior variedade de saladas, um balcão com peixes e até comida japonesa. A mudança foi uma resposta direta a um novo estilo de vida.

— A carne começou a sair do menu diário das pessoas, mais preocupadas com a alimentação. Ao mesmo tempo, aumentou a busca por pratos mais leves — diz o maître.

Também a pedido dos clientes, conta Magal, surgiu, há cerca de 20 anos, o serviço Oásis em Casa. A churrascaria leva toda a sua estrutura — incluindo mesa, cadeira, churrasqueira, fritadeira, cortes especiais de carnes e bufê — até grupos de no mínimo 20 pessoas.

— Um cliente teve essa ideia, pediu-nos isso e não paramos mais. Realizamos eventos aqui na cidade, em Búzios, em Angra e até em São Paulo. Também mandamos garçons e cozinheiros. As únicas preocupações do cliente são assinar o cheque e elogiar no final — brinca Magal, sem deixar de destacar o bem-estar da equipe que coordena. — Não basta só o cliente sair satisfeito. É preciso que ela também saia feliz.

Hansl

Salão à luz de velas e vista privilegiada são destaques do Hansl há 51 anos - ROBERTO MOREYRA / Agência O Globo

O Hansl, no alto do Joá, especializado na gastronomia austríaca, também está na região há muitos anos; 51, precisamente. O salão à luz de velas, com atmosfera romântica e vista deslumbrante da Barra e da Pedra da Gávea, é procurada sobretudo por casais apaixonados. O que nem todos sabem, porém, é que o uso das velas não era um capricho, e sim um ato de extrema necessidade na época da inauguração. Então, a área do restaurante não tinha eletricidade ou água — esta vinha uma nascente na Estrada do Joá. Mesmo assim, Johann Srch, um austríaco de 36 anos, decidiu encarar o desafio de se instalar ali.

Logo que chegou ao Brasil, em 1950, vestindo um de seus ternos, Srch foi diretamente para Bangu, bairro onde sua mãe vivia já há algum tempo, desde que desembarcou no país fugindo da perseguição fascista. Por muito pouco, as altas temperaturas da região não fizeram o austríaco dar meia-volta. Depois de passar por diferentes bairros cariocas, ele decidiu, em 1959, iniciar a construção de uma casa no Joá, que seria concluída três anos depois. No subsolo, para se sustentar, inaugurou um restaurante com pratos de sua terra natal.

O Hansl serve também receitas de países vizinhos da Áustria, como a Alemanha e a Suíça — o fondue, um dos carros-chefe do lugar, começou a ser servido em 1970, graças à chegada de um amigo suíço de Srch ao Rio. Além da iguaria propícia para ser consumida no inverno, fazem muito sucesso no cardápio opções como batatas rosti, salsichas alemães, joelhos de porco e diferentes opções de carnes.

Casa no Joá é especializada na gastronomia austríaca, há 51 anos - ROBERTO MOREYRA / Agência O Globo

— Tive que adaptar algumas receitas para o paladar brasileiro. Não é fácil encontrar insumos como a páprica, os cogumelos, a manjerona e a alcaravia. Até os encontramos aqui, mas eles não têm o mesmo gosto dos plantados na Europa — sentencia.

Para manter-se fiel à tradição, ele conta que importa alguns condimentos.

— Aqui dizem que, em se plantando, tudo dá. Não é bem assim. Alguns condimentos vêm de lugares em que a terra é diferente. É igual ao vinho, não adianta: se a terra é diferente, não te dá o mesmo gosto — argumenta.

Atualmente, o empresário Patrick Srch, filho de Johann, está à frente do negócio. Como todos os outros proprietários de restaurantes longevos ouvidos pela equipe do GLOBO-Barra, ele diz que o diferencial para garantir o sucesso do restaurante é escutar o cliente e saber o que ele quer comer.

— Quando você tem uma culinária tradicional e não muda, e quando acha que o seu cliente é que tem que se adaptar a você, está se restringindo — opina Patrick.

Também como os adminsitradores de Bar do Oswaldo, La Mole, Ettore e Oásis, ele atribui ao boca a boca a continuidade do sucesso.

— Nosso maior marketing é aquele cliente que vem, gosta da comida e comenta com os amigos. Ser aquele restaurante escondidinho, aquela coisa mais difícil, também é algo bom para nós — afirma Patrick.

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