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Economia

BC quer incentivar cartões, mas esbarra em falta de infraestrutura e força do hábito

No interior, internet precária dificulta adesão a pagamento eletrônico
Viviane Dimas precisa ter duas maquininhas de cartão para driblar as falhas da rede de internet Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo
Viviane Dimas precisa ter duas maquininhas de cartão para driblar as falhas da rede de internet Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo

BRASÍLIA, EDÉIA (GO), VALPARAÍSO (GO) e JAPERI - O Banco Central (BC) quer fazer o brasileiro se desapegar do dinheiro vivo. Em um país violento como o Brasil, andar com notas no bolso custa caro. Gera gastos com segurança armada e transporte para os bancos, que repassam isso para os juros cobrados nos empréstimos. Por isso, o governo quer estimular e baratear as transações eletrônicas. Mas mudar o hábito em um país onde há quem não saiba sequer o que é um cartão de débito é um desafio.

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As maiores barreiras são desinformação, falta de hábito e de infraestrutura, com a internet precária no interior. O foco do BC, entretanto, é a periferia das grandes cidades, onde o apego ao dinheiro é maior, e o alto número de habitantes pode ajudar a mudar a cultura mais facilmente do que nos rincões do país. A ideia é convencer gente como a jovem cuidadora de idosos Josilene Ferreira, de 23 anos. A cada 15 dias, depois de sacolejar por uma hora na volta do trabalho, em Brasília, ela chega a Valparaíso, em Goiás, e segue o mesmo ritual: saca todo o salário no caixa eletrônico e caminha até sua casa, à noite, numa área perigosa da cidade:

— Não deixo nem um dia na conta — confessa.

Ela é apenas mais um dos 79 milhões de correntistas com relacionamento bancário mínimo. Jovenila Pinto de Oliveira, de 76 anos, retira toda a aposentadoria apenas com o CPF. É o retrato do tamanho do desafio do Banco Central.

— Cartão? Não sei como usar isso não. E se perder o cartão? Perde o dinheiro todo que está nele? — pergunta ela.

Jovenila vive em Edéia, cidade a 120 quilômetros de Goiânia. Lá, o hábito do dinheiro no bolso é tão arraigado entre os 12 mil habitantes que é comum ver longas filas em frente aos bancos às sextas-feiras. O dinheiro sacado é que movimenta bares e comércio. Muitas vezes, os caixas chegam a ficar vazios.

É por casos como este que o BC quer que que o brasileiro aprenda a usar o cartão de débito. Na semana passada, a autoridade monetária decidiu que a tarifa paga pelos comerciantes nas operações de débito não pode ultrapassar 0,8%. A média está em 1,5%, de acordo com a Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs). A medida só entra em vigor em outubro. Até lá, a estratégia do BC é convencer os comerciantes a ampliar o uso do cartão.

Mas não é tarefa simples. Em Japeri, município da Baixada Fluminense a 70 quilômetros do Centro do Rio, a falta de infraestrutura de internet atrapalha os comerciantes, que sofrem com a ausência de sinal para usar as maquininhas de cartão. Ao mesmo tempo, faltam agências e postos bancários no centro do município — afetado pela violência, que tem como um dos principais alvos os caixas eletrônicos.

SEM SINAL PARA O CARTÃO: “QUANDO CHOVE, JÁ ERA”

Viviane Dimas, dona de uma mercearia, diz que precisa ter duas maquininhas para minimizar as falhas na rede:

— Quando uma está indisponível, uso a outra. Mas, quando chove, já era. Elas não funcionam.

Mas Viviane destaca que, apesar das falhas, a procura por pagamentos com cartão tem aumentado. Uma das razões para isso é a falta de agências bancárias ou casas lotéricas no entorno. No Centro de Japeri, há apenas dois caixas eletrônicos, localizados numa farmácia e num supermercado. Só o primeiro, porém, tem a função saque habilitada.

— Já pensamos em retirar a máquina daqui por causa da sensação de insegurança. Não sabemos em que momento alguém pode assaltar o local, ou se vão tentar algo pior, como explodir o caixa — conta a farmacêutica Lais Dias, que trabalha lá.

Em uma rua próxima, outra farmácia tirou o caixa 24 horas da loja após um pedido do proprietário do imóvel, que mora em cima do comércio, e temia a explosão da máquina. Os funcionários reclamam que, desde que o caixa 24 horas foi retirado, o movimento no estabelecimento caiu drasticamente.

— É um absurdo essa falta de caixas 24 horas e de bancos no Centro. Quando preciso retirar meu benefício, vou até a farmácia. Mas, quando o caixa está sem dinheiro, tenho que ir até outro município. A única loteria do entorno fechou no início do ano porque foi muito assaltada — reclama Maria Helena de Paula, moradora de Japeri.

O caminho até o dinheiro envolve uma viagem até o distrito de Engenheiro Pedreira, no mesmo município, com direito a trem, com tarifa de R$ 4,20 e prazo de 25 minutos para chegar ao local. A alternativa mais em conta, o ônibus a R$ 4,10, requer mais paciência: o trajeto leva 50 minutos. Na chegada, ainda mais tempo de espera. Com a procura por dinheiro, os caixas sempre têm filas.

O Banco Central quer convencer os empresários, por meio das associações, a incentivarem o uso do cartão de débito, mais vantajoso que o de crédito, que tem taxa de 2,6% e demora um mês para repassar o dinheiro para o estabelecimento. Além disso, quer fazer com que a lei de diferenciação de preços, aprovada no Congresso no ano passado, pegue.

A maioria dos brasileiros (64%) sabe que pode ter desconto se pagar à vista, segundo levantamento da FGV a pedido do BC. Mas apenas 32,4% afirmaram receber proposta de redução no preço.

Por isso, o BC entendeu que a cultura dos empregadores também tem que mudar. A autarquia quer incentivar as empresas a fazer transações apenas eletronicamente. Em Edéia, em Goiás, essa é uma realidade distante. Quase todos os comerciantes pagam salários com cédulas. Assim, uma fatia significativa dos recursos que circulam na cidade sequer passa pelos bancos.

—Pago meus funcionários em dinheiro. Se você perguntar por aqui, todos os pequenos comerciantes vão dizer o mesmo — diz Célia de Carvalho, dona de uma lanchonete.

Entre os moradores, o consenso é que não pode faltar dinheiro no bolso nunca. O funcionário público Adriano Santana da Silva, por exemplo, diz que até prefere utilizar o cartão, mas sabe que vai encontrar dificuldades e que alguns lugares só aceitam dinheiro:

— Movimento minha conta praticamente só para fazer saque —conta Adriano.

Isso explica porque, no Brasil, das 60,4 bilhões de transações financeiras, apenas 38,1 bilhões são feitas eletronicamente.

12 BANDEIRAS DIFERENTES E CLIENTELA NO FIADO

Em Edéia, não basta ter o equipamento para pagamento com cartão para garantir a procura. A velha caderneta também é necessária. Ricardo Quirino, dono de uma farmácia, aceita 12 bandeiras diferentes, mas a clientela ainda prefere comprar fiado. Ele tem pendurado o equivalente a três vezes o faturamento mensal do negócio. Também não basta ter caixa eletrônico. Em Edéia, eles estão lá, mas o dinheiro, não.

— No fim de semana nunca tem dinheiro no banco. A gente tem que sair e ir em Indiara (cidade a cerca de 20 quilômetros de distância) — conta Catarina da Silva, de 19 anos, moradora de Edéia.

Uma das razões é a alta demanda por saques. Muita gente saca o salário todo ou o suficiente para arcar com as contas do mês e sobreviver durante a semana. A falta de papel-moeda tem relação com a insegurança. Desde 2013, os bancos reduzem o número de cédulas disponíveis nos caixas eletrônicos em áreas de risco no fim de semana. Edéia sofreu dois grandes assaltos nos últimos anos com a explosão de terminais de autoatendimento. Na época, os clientes do banco assaltado tiveram os saques limitados a R$ 100 diários na lotérica do município.

Uma das medidas já anunciadas pelo BC para incentivar o uso de meios eletrônicos é permitir o recebimento de salários em contas de pagamentos, como o PayPal. Além disso, o BC proibiu os bancos de limitarem transferências a esse tipo de empresa. Assim, busca elevar a concorrência.