Por Fernando Evans e Fernando Pacífico, G1 Campinas e Região

Uma cena se repete à exaustão no cotidiano das delegacias de Campinas (SP), metrópole onde em média cinco boletins de ocorrência são registrados a cada hora, de acordo com dados obtidos pelo G1 com a 3ª Vara Criminal: enquanto tentam assimilar as perdas impostas pela violência, substituíveis ou irreparáveis, vítimas acomodam-se em cadeiras desconfortáveis na esperança de que o relógio mova-se depressa até o fim do primeiro passo na busca por justiça ou alento.

O relatório do juiz corregedor da Polícia Civil, Nelson Augusto Bernardes, destaca que a maioria dos distritos tem estrutura física precária e déficit de pessoal, o que compromete os serviços e gera impactos para a sociedade, apesar dos esforços de funcionários em meio às falhas. Além disso, elas guardam um "arsenal" à espera de destruição e casos que seguem sem respostas por até 18 anos.

Quem atua na Polícia Militar carrega relatos com tom parecido ao do magistrado, o que reforça a sensação de insegurança e impunidade na cidade com 1,1 milhão de habitantes e onde foram contabilizadas 190 mortes violentas em 2017. Veja onde ocorreram, e perfil das vítimas.

Dados e relatos expõem pior cenário das delegacias de Campinas desde 2013

Dados e relatos expõem pior cenário das delegacias de Campinas desde 2013

A limitação nos investimentos também se estende para a Guarda Municipal, que perdeu agentes, viaturas e tem bases alvo de queixas. As atribuições do grupo incluem "medidas preventivas e repressivas".

Veja detalhes abaixo sobre os problemas estruturais das instituições de segurança na quarta reportagem da série "Vidas Contadas", projeto do G1 em parceria com a EPTV.

Vítimas à espera de atendimento no 1º DP, em Campinas — Foto: Fernando Pacífico / G1

Como funciona a máquina?

Uma dona de casa de 48 anos, acompanhada do filho de 12, aceita interromper o silêncio para maquiar o abalo psicológico que a fez ir até o 1º DP, Centro, para relatar que foi agredida.

"Faz 1h30 que estou aqui, conversar é bom para passar o tempo", lamenta antes de descrever uma série de deficiências que tornam a busca por apoio mais angustiante, após sair do Nova Europa.

"Chega aqui praticamente despedaçada e falta cortesia dos policiais no atendimento [...] Aí você fica aqui sentada vendo cenas difíceis."

Na área do Taquaral, a demora também é vista com indignação. "Não é culpa dele [escrivão] a gente ficar aqui esse tempo... Pagamos impostos, tudo certinho, mas não dá para ir até a esquina sem ter medo", questiona uma auxiliar que foi ao 4º DP para registrar um boletim sobre o furto do carro.

Estatísticas fornecidas pelo estado, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), revelam que a Polícia Civil perdeu 20% do efetivo de Campinas nos últimos cinco anos: passou de 606 para 500.

Efetivo da Polícia Civil em Campinas
Cidade perdeu 106 servidores em cinco anos, afirma estado
Fonte: Polícia Civil (via LAI)

O quadro inclui delegados, escrivães, investigadores, entre outros profissionais que atuaram no registro de pelo menos 49,3 mil ocorrências e abertura de 7,6 mil inquéritos no ano passado.

"A Polícia Civil não recebe investimentos adequados há muito tempo [....] A população não pode viver da sensação de segurança por conta de ter viatura da Polícia Militar na rua. Ela tem que estar na rua, claro, todos nós queremos, mas a Polícia Civil é quem dá continuidade no trabalho investigativo, instaura inquérito e vai solucionar o crime", ressalta Bernardes sobre relatório divulgado este mês à reportagem, com base na correição realizada no fim do ano passado.

Em ata, ele determinou que inquéritos parados há quatro meses sejam concluídos o mais breve possível; além das entregas de procedimentos sem remessa ao Fórum há mais de um semestre e dos termos circunstanciados de casos ocorridos até dezembro de 2015. "É preciso que o Ministério Público avalie hipóteses de denúncia, pedido de diligências ou arquivamento", diz o magistrado.

Prédio do 9º DP de Campinas — Foto: Fernando Evans/G1

'Sem fôlego'

Um delegado, que pediu para não ser identificado por medo de represália, avalia que a Polícia Civil está "sem fôlego e precisa de socorro" em Campinas. Para ele, o efetivo deveria ter pelo menos 800 profissionais e os próximos concursos previstos serão insuficientes para a reposição do quadro.

"Eu chego na delegacia 9h e vou embora 23h, quase todos os dias. Para motivar as pessoas que trabalham comigo, eu fico junto, é o meu jeito de trabalhar. Se alguma coisa se estende até a madrugada eu continuo. O maior problema é a falta de perspectiva de que vai melhorar. O efetivo já estava abaixo, diminuiu, mas a população segue crescendo vertiginosamente", critica.

Em uma das delegacias de Campinas, armas estão guardadas em armários — Foto: Fernando Pacífico / G1

Para o policial, os indicadores criminais na metrópole seriam reduzidos se houvesse mais investimentos na segurança pelas administrações públicas. Além disso, ele afirma que armas apreendidas em investigações, à espera de aval da Justiça para destruição, ficam guardadas por tempo indeterminado no armário da delegacia, o que não é ideal apesar da presença de policiais.

De acordo com relatório da Justiça, as delegacias da cidade guardam cerca de 380 armas e os policiais devem solicitar imediata destruição, após conclusões de laudos e consulta ao MP.

"Quando você faz o trabalho de dois, acaba cansando, há perda de produtividade. Outro pode 'encurtar o braço' ao pensar: Por que eu vou me f... [sic]? Muitos não valorizam a polícia", ressalta.

Delegacias que registraram mais BOs

  • 1º DP (Centro) - 11,4 mil
  • 9º DP (Jardim Aeroporto) - 8,5 mil
  • 6º DP (Jardim Novo Campos Elíseos) - 5,9 mil

Delegacias com mais inquéritos abertos

  • 2ª DDM - 1,9 mil
  • 1ª DDM - 1 mil
  • Delegacia de Investigação sobre Entorpecentes (Dise) - 663

Casos mais antigos

  • Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa (SHPP) - 2000
  • 6º DP (Jardim Novo Campos Elíseos) - 2003
  • 13º DP (Cambuí) - 2006

Menos recursos

O total de investimentos realizados pelo estado nas delegacias da metrópole diminuiu 77% entre 2016 e 2017, o que representa corte de R$ 2,4 milhões para R$ 551,5 mil.

A única menção positiva feita por Bernardes no relatório faz referência às delegacias especializadas em atender às mulheres. O conteúdo será submetido ao estado, Tribunal de Justiça (TJ-SP) e MP.

"A criação da 2ª DDM [Jardim Londres] e a mudança da 1ª DDM para novo prédio [do Bonfim para o Jardim Proença] indicam esforços de melhorar a prestação do serviço", destaca o magistrado. A abertura da nova unidade e a transferência ocorreram em 2016, após uma série de atrasos.

Investimentos do estado em delegacias de Campinas
Total aplicado em unidades de segurança diminuiu 77% entre 2016 e 2017, segundo governo.
Fonte: Polícia Civil (via LAI)

Sigilo

O G1 solicitou estatísticas sobre o efetivo da Polícia Militar, em Campinas, com objetivo de verificar se também houve cortes no quadro. Entretanto, a major Lizandra Donamore dos Santos informou que a divulgação dos dados seria prejudicial para as atividades, combate à criminalidade e restabelecimento da ordem pública. A informação é considerada sigilosa pelo governo.

Policiais militares na frente de delegacia, em Campinas — Foto: Fernando Pacífico / G1

"A Polícia Militar poderá vir a ser afrontada por criminosos portando um número maior de armas e de calibres superiores ao da Instituição", diz texto.

Três PMs ouvidos pelo G1 contaram que os principais problemas da corporação passam pelo número insuficiente de viaturas, falta de assistência jurídica do estado e até mesmo limitação na quantidade de fardas disponíveis aos funcionários. "Hoje a quantidade de veículos está pela metade e falta manutenção", destaca um dos servidores enquanto vigia quatro presos na delegacia.

O colega ao lado explica que ele e outros PMs pagam mensalmente de R$ 70 a R$ 80 para um escritório de advocacia, porque não há apoio do governo quando eles precisam se defender. "É uma proteção necessária para nós. Tem gente que chegou a pagar muito mais", conta antes de descrever a situação do uniforme. "Só tenho duas trocas, minha calça está toda remendada."

"Só está na polícia quem ama. Se fosse por dinheiro, jamais entraria", complementa o terceiro.

Por outro lado, a corporação destacou que o valor total investido pelo governo para compras de viaturas e construções de imóveis no estado de São Paulo cresceu 129% entre 2016 e 2017 - passou de R$ 45,1 milhões para R$ 103,9 milhões. O montante, porém, é o segundo menor em cinco anos.

Valor investido pelo estado em viaturas e imóveis da PM de SP
Total de recursos aplicados aumentou 129% entre 2016 e 2017.
Fonte: Polícia Militar (via LAI)

A corporação reforça, ainda, que houve alta na quantidade de verba aplicada em custeio - combustível, lubrificantes, peças/serviços dos automóveis; além da conservação dos imóveis.

Recursos para custeio de viaturas e imóveis da PM de SP
Quantidade de verbas destinadas subiu 0,5 % entre 2016 e 2017.
Fonte: Polícia Militar (via LAI)

'Cara a tapa'

A crise na segurança também atinge a Guarda, de acordo com relatos de servidores e o sindicato que representa a categoria (STMC). Em março, o G1 mostrou que o efetivo foi reduzido pelo segundo ano seguido, em 2017, e que o grupo perdeu 12 viaturas após fim de um contrato.

"A Guarda passa pelo pior estágio dos 20 anos de história. O investimento passa por novos profissionais, mas hoje temos 722, quando o ideal seria ter pelo menos 1,1 mil", afirma o diretor da entidade, Louviram Valeriano de Souza.

Efetivo da Guarda de Campinas
Quadro de profissionais diminuiu entre 2015 e 2017
Fonte: Prefeitura (via LAI)

Um guarda, que também prefere não ter a identidade revelada para "evitar problemas", demonstra indignação ao contar sobre as dificuldades na rotina de trabalho. Ele ressalta que uma equipe chega a cobrir área de três bases, no período noturno, em virtude do déficit e má distribuição do efetivo.

"Hoje são cerca de 230 que trabalham no patrulhamento, enquanto 500 ficam no administrativo, comando, emprestados, segurança do prefeito, fixos nas bases, etc. Eu sou um dos teimosos, coloco a cara a tapa na rua, já passei apuros, mas tem muita gente nova que prefere ficar encostada porque o risco é menor [...] Falta estímulo, na rua um erro pode custar uma vida, levar um tiro", destaca ao lembrar que o problema teve início em administrações anteriores e "ninguém resolve".

Guardas durante ocorrência no Centro de Campinas — Foto: Cláusivo Tavoloni/EPTV

Ele também é categórico ao avaliar as viaturas disponíveis para a Guarda. "A minha é emprestada e faltam manutenções, carros com problemas de suspensão, direção hidráulica, até freio [...] A gente fica no 'ela aguenta mais hoje' e 'segura mais um pouco' para não ficar sem", lembra.

Outro ponto criticado pelo STMC é a situação das bases. Desde o ano passado, a administração e o Ministério Público do Trabalho (MPT) fizeram acordos para que cinco delas sejam desativadas até dezembro, em virtude das condições precárias denunciadas pela entidade. "A Prefeitura diz que avalia a possibilidade de novas construções, mas a gente não viu o projeto", diz Souza.

Dados do governo municipal indicam que o investimento na Guarda subiu 10,5% entre 2016 e 2017 - foi de R$ 1,4 milhão para R$ 1,6 milhão. O valor, entretanto, é o segundo menor em cinco anos.

Investimentos na Guarda de Campinas
Governo elevou quantidade de recursos, mas valor é o segundo menor em cinco anos.
Fonte: Prefeitura (via LAI)

O que será feito?

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública defendeu que "investe incessantemente na valorização de suas polícias em todo o Estado e cumpre integralmente os pagamentos de seus agentes, sem parcelamento ou atrasos." A pasta destaca que desde 2014 premia o esforço dos policiais na redução da criminalidade por meio do "Programa de Metas e de Bonificação Policial."

"Em relação ao atendimento nas delegacias, os policiais são orientados e treinados para o bom atendimento ao público. Eventuais ações e casos de mau atendimento são passíveis de apuração, através de denúncias investigadas pela Corregedoria da Polícia Civil", ressalta a SSP.

Em seu posicionamento, a pasta informa que a 1ª Delegacia Seccional registra uma média de 3.300 boletins por mês, enquanto a 2ª contabiliza uma média de 2.209 boletins de ocorrência por mês.

Sobre as armas apreendidas e guardadas nas delegaciais, a Polícia Civil explica que elas não são mais encaminhadas ao Poder Judiciário, "após decisão do Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo", e "permanecem em cofres, nas unidades policiais, até a obtenção de autorização judicial para suas destruições, quando são encaminhadas ao Exército". A SSP ressalta que estão sendo adotadas providências de acordo com determinação do juiz corregedor.

"Por fim, é importante esclarecer que não há déficit para as polícias Civil e Militar. Desde 2011 para região foram encaminhados 3.004 policiais. Em novembro passado, foram nomeados 1.240 policiais civis e anunciada abertura de 2.750 vagas para diversas carreiras da Polícia Civil, cuja as inscrições para delegados, investigadores e escrivães já foram abertas. [...] Cabe dizer também que no final do ano passado foram compradas 170 viaturas novas para a Polícia Militar das regiões de Campinas, Sorocaba e Piracicaba, investimento de R$ 13,9 milhões", diz a nota.

E a Guarda Municipal?

Sobre a situação da Guarda, a Prefeitura de Campinas alegou que contratou 84 profissionais entre 2013 e 2015, e depois disso não aumentou o efetivo por causa de reflexos da crise econômica. "Também houve perdas com aposentadorias, exonerações, pedidos de demissões e falecimentos. Já está em estudo a realização de um concurso público", diz nota da assessoria sem mencionar, contudo, prazo ou quantidade de servidores que devem ser contratados pelo processo.

Além disso, a administração defendeu que todas as áreas da cidade possuem patrulhamento diurno e noturno, e que "as escalas dos servidores cumprem rotinas necessárias". Em outro trecho, o governo ressalta que a Guarda tem 80 veículos na frota, o que atende à demanda das equipes.

Por fim, a Prefeitura alega que o fechamento de bases foi definido com base em planejamento acertado com o MPT, e não há mudança na rotina dos guardas nos bairros de cobertura. "A reorganização das bases reforça o patrulhamento, com mais guardas municipais nas ruas que antes ficavam no apoio administrativo. [...] A Guarda Municipal de Campinas é um serviço de excelência, muito bem avaliado [...] inclusive, referência para outras guardas municipais."

'Vidas Contadas'

Esta é a quarta reportagem da série "Vidas Contadas", que aborda o tema da violência em Campinas sob diferentes perspectivas. Na segunda-feira (23), o G1 trouxe um mapa que mostra onde ocorreram as 190 mortes violentas em 2017; no dia seguinte, um perfil destas vítimas; e na quarta-feira mostrou o que condenados por homicídio sentem e relatam sobre os crimes.

O projeto apresentará na reportagem desta sexta-feira uma análise de especialistas sobre o tema.

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